26.12.11

cheiro, som e cenas de uma leitura apaixonada

O jeito de falar que lhe faltara desde a partida agora a quilômetros distantes ecoava através das linhas de um relato de viagem. A última semana fora marcada pela ausência daquele que se expressava numa entonação tão atraente, que, inconsciente, a seduzia com palavras desesperadas. Redigidas e declamadas ansiosas por compreensão, movidas à paixão pela arte de literar vida. As mesmas e outras que num novo texto hipnotizavam-na, mais uma vez.

Ela lia como se o ouvido estivesse colado à voz narrativa. Deliciava-se no estilo que empolgara seu paladar sedento por lirismo. Sentia expandir o coração, pressionar, sutil, a alma pra fora. Emoção feito corrente d'água forte lavando tudo em queda livre pra baixo do horizonte. Era um deslumbre exagerado? Não discernia as causas tão bem-vindas da boa sensação.

Os olhos apenas reviviam, a cada sílaba forte, o encanto e a surpresa que lhe tomaram a alma e a aura, certo dia, no repente de um único segundo! No stop da rotina, quando teve diante dos olhos a primeira visão em carne e osso e voz. Linguagem e ideias faladas que lhe atraíram em meio à infinidade de vozes à sua volta. Queria poder explicar por que não pôde controlar. Um novo desejo impetuoso nos sentidos todos, de uma vez tomados ao primeiro encontro. E ao segundo, ao terceiro, e agora. De dentro da vida para uma nova breve eternidade.

O ecstasy da existência, espontâneo e livre, de volta entre suavidade e sedução pontiaguda, pela carne, rebentando prazer por todo o corpo. Sentir-se viva era importante. As memórias do simples tão difícil e raro e do acaso, aguçadas pelo teagacê nos caminhos (des)encontrados da sua razão.

Suspirava e suspirava num abraço apertado com o seu vigésimo terceiro verão. Chegara o tempo de calor, era festa sem fim no encerramento deste mais recente calendário. Ela redescobrira sabores (des)encantados! Ela se apaixonara.

Quis estar perto para contar na troca de um olhar: admiração que ocupava ocupava ocupava ocupava... Quis ver seus gestos. Imaginou ler seus lábios. Sentiu saudade do seu cheiro.

5.12.11

os olhos borrados no espelho

um incômodo a perseguia nos últimos dias,
setevintequatrohoras que afastavam o futuro
do seu passado. novos-velhos períodos entrelaçados,
impregnados de um cheiro forte, essência permanente,
que repudiava o olfato e os olhos da vida,
desviava os bons ventos da paz.
- estou inteira, mas as veias param quando o tempo
esfria. o verão só ameaça, e não chega. uma vida-inverno
que sobrevive, sem brisa e sem sol quente. estava ansiosa,
pensava no que lhe trouxera de volta o acaso provocado,
força latente, dor prevista sob as glândulas latejantes,
impulsos que agora produziam tristeza concreta. dor.
força ao contrário. travestida de paixão viva. questionava
certezas construídas, e o que fizera dos últimos meses sendo
feliz, e o que adorava ser e não ser. ela queria não ter
razões opostas, os conflitos não conseguiram mudar
qualquer coisa de lugar entre os dois. cansaço e preguiça
de sentir ódio. lançava-se mais uma vez às profundezas
de um quebra-cabeça colorido, lúdico, confuso.
mal voltara àquele pequeno in cômodo e não via mais
a porta pela qual um dia saíra, e agora retornava, fechada,
apagadas as luzes ao dar de costas, encontrara apenas
um feixe refletido em meio à escuridão do banheiro
escondido, deparou-se com uma perfuração sinistra
- uma gota de sangue endurecido algumas bocas abaixo
da orelha. e as olheiras feitas de uma madrugada,
bem-arrumada - e derramada. era a perda de água e de sangue
e de amor sugados, roubados enquanto dormia. já era dia
quando ela percebeu o vento passado que levara
o pouco que havia.

é como a pluma
que o vento vai levando pelo ar
voa tão leve
mas tem a vida breve
precisa que haja vento sem parar

1.12.11

recusa ao paraíso

arrependeu-se
aos primeiros passos
diante do quarto
covarde

a amargura
em seu espaço
cercado de realidade
subjetiva

lembrou-se
por que saíra
decidida
- não voltar antes de 30 de novembro

mas ali estava
a decisão ficara
em algum banco do metrô

na ida ou na volta

olhava para o silêncio
em busca do tempo

a bagunça
vazia
a janela aberta
gelava
coisas sem caminho

(in)determinadas
pela fraqueza
da madrugada
- renunciada

perguntou-se

eram as lembranças
daqueles lençóis
de dias desarrumados

era a falta do velho
presente

ou era

a saudade do novo
pressuposto

- paraíso em horas contadas

19.10.11

veraneio

Tive uma inspiração sincera. Como se
estivesse com um ar mais limpo
atravessando os poros da pele, os caminhos do corpo
tomados de oxigênio puro. Eu vivo por um minuto
uma lágrima de alívio, de sentir se libertar
de braços abertos, como se voasse parada
na ponta da pedra. Vontade de fechar os olhos
pra ouvir cair o ritmo do fim do mundo real, sumir
o cinza recoberto, chegar aonde não existe e faz mais sentido.
Não sei se foram os olhos ou se foi a vida que tem
dentro deles. Um ponto da minha memória
onde ficou uma luz clara e colorida foi amarrado
por um sorriso que eu ainda nem descobri por que
se esconde quase o tempo todo. E me faz lembrar
de arrepios um pouco menos frios e vazios que
até ali eram tudo que completavam as perguntas
e os dias. Parecem novas as palavras
e todo o resto que agora enxergo e sinto
com coração e olhos paralisados. Faz tanto tempo que
a gente podia ter se conhecido entre os livros
ou nas ideias soltas no fim de uma página ou outra
desta natureza invisível em que escrevo, pensando
em linhas espremidas porque não cabem o seu nome
e o meu juntos por acaso ou por uma ligação provável
entre um conhecido jornalista ou qualquer impostor
que fosse, que falássemos mal em complô ou só
pra escolher uma opinião comum. Temos duas ou três
horas de vida e alguma coisa enroscada numa semana fria
e cansada da primavera. O cheiro da próxima estação,
de longe, eu não me lembro, mas senti quando chegou
num susto gostoso de parar o coração e voltar
a fazer sonhos secretos em bilhetes amassados
numa caixa guardada ou dissolvidos, molhados
de saliva. O que eu imagino não alcança a distância
entre um desejo afastado do outro que eu nem sei
se quer acontecer ou se vai trazer
qualquer dor a mais sem que se explique antes
a que veio e o que traz sob o grave da voz e dos planos
que preenchem e esvaziam dois copos.

18.10.11

sem destinatários

Eu agora peguei essa mania idiota de escrever como se tudo fosse uma carta pra um destinatário fantasma. A página do Word não funciona mais, não entendo. O bloco de notas nem pras minhas poesias mais sem vergonha serve. Blogspot tem sido um fiasco, com mil rascunhos descartados. Voltei à escrever à mão. Inspirou meia dúzia de textos péssimos. Eram muito de mim, além do que fosse interessante mostrar. Mas, troquei de bolsa e o bloquinho de notas ficou esquecido, então comecei a me desesperar quando vi que meus pensamentos estavam indo pra lugar nenhum. Transcrever-me é uma maneira de manter alguma lucidez. Ou só mesmo uma maneira sem graça de existir no mundo. Sem sucesso. Tenho me esforçado também pra tentar existir de fato, existir nas pessoas, nas coisas que eu faço. Sem sucesso. Tenho a sensação de que regredi dez anos. Eu me calo e fico num monólogo interno enquanto as pessoas trocam milhares de ideias diante de mim. Eu não consigo trocar nada com ninguém. Tranquei as portas e, em mais um dos meus impulsos escrotos, engoli a chave. Agora me ponho a digitar intimidades em corpo de email, para ninguém, sem cópia pra alguém, sem cópias ocultas, sem assunto, sem anexos. Cada dia piora e já sinto que não consigo nem me comunicar comigo mesma. Os textos só acontecem nessa tática falsa de amigo imaginário. E, a cada dia mais doído, o texto só sai se eu romper as barragens da água salgada do que eu ainda insisto em chamar de alma. Na verdade, estou um amontoado de dias e noites sem graça e sem sentido. Estou só pra mim e quase mais nem isso. Estou inteira em pontos que se abrem - e sangram - todos os dias. Não me refiz, não me refaço.

11.10.11

lua cheia

acho que os meus olhos vão adoecer
inquietos, abro e fecho.
perturbo as veias,
que não me deixam,
que não me querem.

faz tempo que o sono não apaga as minhas ideias
inquietas, digo e calo.
acordo no melhor de todos os sonhos,
que não me querem.

os cristais quando escorrem pelo rosto cortam,
pêlo, rosto - não desfaz alguns nós
inextricáveis, vou e volto.

embaralho a simplicidade das minhas palavras,
frases mal acabadas, as fases mal acabadas, 

que não me deixam!

30.9.11

reflorescimento - poema não acabado

traguei a primavera
quis seu olhar
do meu colo
me voltou alegria,
misturada com tristeza,
como uma saudade boa,
mas triste
você, perto e longe
ao mesmo tempo

aleatoriamente
quebradas em dezenas de linhas curtas
em voltas e vozes
caladas em ritmo arbitrário
combinações que se cortam
signos que me tragam
a vida desta tarde
sem destino, vago, sem espaço
ao peito,
flores, como velas
como vê-las
a descarregarem o corpo
os escombros de uma tristeza
libertos em espinhos e pétalas
somos a estação


quando você me ouvir cantar
venha, não creia, eu não corro perigo
digo, não digo, não ligo, deixo no ar
eu sigo apenas porque eu gosto de cantar
tudo vai mal, tudo
tudo é igual quando eu canto e sou mudo
mas eu não minto, não minto
estou longe e perto
sinto alegrias, tristezas e brinco
meu amor
tudo em volta está deserto, tudo certo
udo certo como dois e dois são cinco
quando você me ouvir chorar
tente, não cante, não conte comigo
falo, não calo, não falo, deixo sangrar
algumas lágrimas bastam pra consolar
tudo vai mal, tudo
tudo mudou, não me iludo e contudo
é a mesma porta sem trinco, o mesmo tetoe 
a mesma lua a furar nosso zinco
meu amor
tudo em volta está deserto, tudo certo
tudo certo como dois e dois são cinco

21.9.11

(es)vazio

hoje faltou alegria
fiquei muda
me mordeu qualquer bicho
algum troço esquisito
me deu paralisia

a solidão não foi companhia
- até ela se foi
levou meu ar e meus pulmões
esqueceu um tanto de lágrimas
- esquizofrênicas
e as veias sem vi(d)as

virei a alma do avesso
e, ainda assim, não me vi
gravei a minha voz
pra depois ouvir
não reconheci

a escrita fez rima
- infantil
fingiu ser minha
e se tornou
nada vezes poesia
que dá em nada

atrás da porta
meros rabiscos meus
significados seus
no entardecer
o grafite é invisível

como a saudade
como o que sinto
como o que não existe

nesta tarde, sem apetite.

12.9.11

traçados
















Desceu as escadas, me viu.
Sem perguntar, pedir,
entrou e bateu a porta.

[As mãos se apoiaram entre os azulejos.
O amor foi devorado.
Os olhos, no escuro, não diziam]

Ao chão!
                Ao cheiro!
                                   À surpresa!

Tocava-me, prendia
outra vez, o ar, o tempo,
parados, incontrolados,
meus lábios servidos de delírio.

O pulso e as pálpebras
                                      caindo.
As vozes e os segundos     
                                       em ritmo,
em mãos.

Levou nossos sentidos
ao quadrado
ao lado.

[O perfume dos seus carinhos,
lençóis,
dias vazios.]

A-calma
pr'alguma dor,
alguma falta,
alguma ansiedade
que houvesse.

O prazer silenciava meus tormentos.

Retorcido em gemidos, segurava minha cintura
como se fosse perdê-la.
Eu queria apenas estar e ser esta noite,
desenhada no papel, no caderno de capa vermelha.

Meu retrato: menina,
de olhar perdido
nos lados do quarto.

[Escritos
preto com branco,
sobre um tipo comum
de letra,
do que se diz,
do que se quer.]

Os nossos hálitos não sabem de si.

- Escrevi num canto borrado.

O nanquim fez curvas.
No seu traço,
a literatura de mim, espírito despido
à janela do alto do prédio,
a cidade ressentida abrigando nosso infinito,
os edifícios.

De tanto ser
                     - fomos
                                   escorremos
entre estrelas
                      e paredes
                                      paralelos
cruzavam-se
                      intensos
                                      encontros.

24.8.11

memória literária


24 de agosto de 1899, Buenos Aires: nascimento de Jorge Luis Borges.

---

1964

I
Ya no es mágico el mundo. Te han dejado.
Ya no compartirás la clara luna
Ni los lentos jardines.
Ya no hay una Luna que no sea espejo del pasado,
Cristal de soledad, sol de agonías.
Adiós las mutuas manos y las cienes
Que acercaba el amor. Hoy solo tienes
La fiel memoria y los desiertos días.
Nadie pierde (repites vanamente)
Sino lo que no tiene y no ha tenido
Nunca, pero no basta ser valiente
Para aprender el arte del olvido.
Un símbolo, una rosa, te desgarra
y te puede matar una guitarra.


II
Ya no seré feliz. Tal vez no importa.
Hay tantas otras cosas en el mundo;
Un instante cualquiera es más profundo
Y diverso que el mar. La vida es corta
Y aunque las horas son tan largas, una
Oscura maravilla nos acecha, la muerte,
ese otro mar, esa otra flecha
Que nos libra del sol y de la luna
Y del amor. La dicha que me diste
Y me quitaste debe ser borrada;
Lo que era todo tiene que ser nada.
Sólo me queda el goce de estar triste,
Esa vana costumbre que me inclina
Al sur, a cierta puerta, a cierta esquina





12.8.11

amor velado
















falsa sexta-feira 13
na escuridão sinistra
da minha manhã
cinza brilhante
envolvido nas nuvens
ressaca sentimental
4h53 até o fim da madrugada
quantos estão morrendo agora?
raiva vampírica

desejei infinito aquele luar
vagar em silêncio
o perigo enjoar o estômago
o gosto de ferro gelar
o juízo corrompido

escrúpulos são muros
somos assassinos por natureza

eis a dor de um corpo em outro corpo
a transferência da morte
pra qualquer um
hoje é 12 de agosto
é inesquecível
pra qualquer um
desenterrar e enterrar

com o pesar destes dias
tristes, insossos

brindo o sangue de hoje
num adeus aprisionado
grito num choro de desespero
mato para viver
a solidão de não acreditar

no amor
em nada
em ninguém

1.8.11

para a minha menina




oh, honey, não se assuste de novo
é só a mesma escuridão passageira
você só precisa ficar calma
e sentir meu carinho por você
eu também só tenho você
e isso vai ser sempre o bastante
minhas mãos vão limpar
o que cair pelo seu rosto
enquanto você me escreve e me conta
sobre o que você fez hoje
sobre como você se sente
nós podemos sair e comer alguma coisa
vamos ao parque amanhã cedo
pra você lembrar que há vida
e ver que há outros e outras
não precisa se proteger de mim
eu compreendo cada impulso
que parte do seu coração
você precisa saber  que eu vou estar aqui pro resto da vida
pra te proteger
da sua tristeza e da sua alegria
quando a sua cabeça desabar bêbada ou cansada
eu vou apoiá-la
o suficiente pra você não se machucar
essa dor vai passar
e vão vir outras
você é tão frágil
quando você vive
está chovendo no seu olho?
agora a sua doçura vai derreter
e depois a minha menina delicada vai embora
mas eu vou continuar aqui
agora você sabe
que somos só eu e você

28.7.11

sexta-feira. sexta-feira. sexta-feira...

quinta-feira pede sexta-feira
que pede cerveja
que pede conversa
que pede alguém
que pede mais cerveja
que pede mais conversa
que pede mais alguém
que pede mais cerveja
que pede mais risada
que pede mais sexta-feira
que pede madrugada
que pede alguém
pede o pé de alguém
que não pede mais nada.

18.7.11

novo blog

meus queridos e raros leitores,
criei um novo blog e quero convidá-los a acompanhá-lo: transposições
não vou abandonar este, até porque são propostas diferentes e necessito de ambas.

mas quem gosta daqui muito provavelmente vai gostar de lá tbm! =)

a ideia é mais ou menos essa:

Inauguro um espaço para as ideias que, até então, se diluíam na minha subjetividade. A moda online do ‘compartilhar’ me empolgou a abrir as anotações. Transpor uma percepção do cotidiano, de experiências,  da sociedade, do jornalismo, das pessoas e das coisas. Interessa-me o que, em geral, está em oposição à contradição que vivemos. Não só teorias e concepções, mas ações – políticas, artísticas, sociais – que tem por fim uma organização daqueles que sustentam as nossas cidades, um avanço da consciência na cidade.

15.7.11

olhos livres

livros, livros e mais livros.
leia-os.
livre-os.
livre-se,
liberdade,
livrai-nos dos velhos versos
e dos velhos.
resgatai o Livro, o Livre, as Letras.
dos livros livres, novos livres.
dos livros, livres novos livros,
versos livres
- ler, produzir, distribuir.

19.6.11

la nouvelle jeunesse
















Deixar o que precisar ficar
para trás,
época morta,
para trás!

Adiante, apenas a cidade-universidade
dos espaços, ideias, atos,
a liberdade exata.

- sonhamos!

Queremos os livros proibidos, as drogas ilícitas,
as festas imorais, as reuniões.
De censura, bastam-nos os pais!

Não nos corrompemos às suas ilusões.
O que vemos é uma mentira.
O que vivemos é uma mentira!

Por dentro dessa arquitetura intocável,
apenas um vazio há tempos apodrecido
Seu mal gosto antiquado
cobrimos com cartazes!
Pichamos a ordem do dia.

E se falamos para uma cidade velha,
que já não enxerga nem nos ouve,
multiplicar as palavras
em uma voz Internacional.

- sonhamos!

Da Europa ou da América
UMA BANDEIRA
pr'essa multidão amordaçada

sem direção,

em Paris, Madrid, Atenas,
Santiago, São Paulo, nas ruas,

(h)a juventude.

10.6.11

chuva artificial

de repente as águas se misturaram.

apenas sentia a chuva aquecendo meus arrepios. a queda d'água enfraquecida, como as minhas vontades. irritantemente fracas. as gotas - elas não alcançam as horas do meu cansaço. mas eu forço, aumento a temperatura. e faço derreter minha tensão no vapor dessa catarse diária.
a eletricidade que bombeia minha purificação é o que silencia meu desespero. ali, ninguém me ouve. o rosto molhado ilude a sensibilidade. não dá pra ver, saber, se há água demais ou de menos nos meus olhos. mas enquanto as tiver em mim, o registro não gira. enquanto sentir frio. enquanto estiver confortável pra todo o meu corpo, sentado ou encostado ali. enquanto disso eu precisar.
a tristeza parece mais suave entre toda essa espuma. a culpa parece mais limpa.

desligo o chuveiro e despejo em mim as ervas em banho. instante sem fôlego, choque térmico, a finalização de um descarrego.
olho pro ralo procurando algum sinal da minha angústia.

26.4.11

coração apertado

hoje o tempo está bom para um abraço apertado, mas o meu não chega. a minha expectativa é a de uma criança com a esperança de receber um ovo de chocolate atrasado do coelhinho, em plena terça-feira pós domingo de páscoa. será que eu preciso procurar o sr. coelho? é isso que a minha mãe fazia quando eu era criança. aliás, caçar tesouros deve dar uma sensação muito gostosa, emocionante, aventureira!
mas nem lembro o que é isso. pareço longe de qualquer tesouro, se é que ele existe. - e não venha me dizer, minha segunda voz, que já existem tesouros ao meu lado. que papinho!
meu tesouro só se for o frio. frio que eu cavei dentro desse abismo onde ninguém entra, onde ninguém nunca quer entrar. ele é tão escuro assim? alguns já até experimentaram, caramba! apesar que muitos experimentaram e se foram. os que ficaram preferiram manter certa distância do fundo do abismo. acho que os compreendo. e eu, do fundo, mal os vejo, menos ainda consigo abraçá-los em dias como hoje.
queria ter superpoderes elásticos nos braços e no corpo todo pra poder passar de mim para você. chegar no seu peito e apoiar meu queixo no seu ombro direito. sou capaz de te compreender e decifrar seus segredos até, mas de longe. se eu mostrar minhas mãos, você pode se assustar com o tamanho das garras. se eu falar, você pode achar meu tom de voz tão agressivo que vai preferir levar uma bronca do chefe a conversar sobre qualquer assunto comigo. se eu te olhar nos olhos, sua impressão vai ser de que estou te encarando e procurando briga. se você decidir me dizer o que eu devo ou não fazer, então, vou te mandar pro inferno uma vez só e vai ser suficiente pra você não voltar nunca mais.
parece que os braços vão se atrofiando conforme você não os utiliza. é assim com a minha escrita. e pensar isso me lembra daquela sensação de quando você chorou muito, por uma tristeza tão forte, com lágrimas tão pesadas, e então alguém ou algo ou você mesma arranca uma risada sua, sincera. você até havia esquecido que podia sorrir e, de repente, sem perceber, escapou-lhe uma gargalhada desajeitada. eu não levo jeito pra rir... não tenho muito jeito com as pessoas também, nem comigo mesma. acho que não sei levar a vida.
não sei se foi sempre assim, mas sinto o agora como um momento de epifania.
o agora não é bom. parece que quanto mais se sabe, mais se descobre, mais se entristece, mais se deprime, mais se revolta, mais se nega!
a vida, sem percebê-la, deve ser mais leve e feliz.

24.3.11

todos os dias que você escolhe ignorar

os beijos, quando escapam,
cortam meus lábios
sei que não posso impedir-te de ir
mas o que haverá de melhor longe de nós dois?

a tua ausência resseca a minha alma,
inverte os cantos da minha cama.
me acaricio, mas é tão frio.

posso ver o sono perdido, 
passeando ao redor da paranóia,
me desesperando, enquanto penso,
enquanto sinto a posse
do que eu não tenho.

pesadelos não têm compaixão.
não me perturbe com a voz dela ao fundo.
me deixe sonhar que sou una.

21.3.11

subway

tenho vontade de fazer parte desses trilhos que me guiam todos os dias. meu reflexo se mistura às linhas sem que eu perceba. a luz, a minha cabeça... se desgruda, se solta em duas, três... eu me multiplico através do vidro. no intervalo de uma parede, fui decaptada. ela me olha. o trem anda e eu a perco de vista. deslizando e deslizando sobre o meu sangue, meu gosto de ferro. observa um homem sobre a faixa amarela. os trilhos atraem a sua cabeça. mais um decaptado. depressa os passageiros seguem pra algum destino - paraíso ou liberdade? preciso saber onde estou. não consigo desviar meus olhos pra nenhum caminho. a fraqueza rende meu corpo. onde estão meus olhos? eu não consigo me mexer. meus restos se dividiram entre as estações. meu coração quis ficar. até chegar à minha boca, agora, um labirinto de pregos quebrados. minha alma foi triturada em silêncio entre as ferragens. ninguém se pergunta o que está lá fora, quem está lá, no escuro subterrâneo. as almas que olharam para os trilhos caminham sem destino, sem cabeças, nos corredores de emergência. 
minhas mãos presas no corrimão. debruçada sobre a proteção férrea, como se ali tivesse congelado após um momento de vertigem.
- fim da linha -

6.3.11

minha festa colorida

a suavidade entrava e saia
um pouco de brisa
[sem mar, água]
um pouco de alegria para os meus pulmões

meu olhar driblava os arranha-céus pra não perder um segundo daquele espetáculo. não há pintura que supere as cores absurdas do anoitecer. layout dos deuses.

color-
indo o céu

vermelho
-indo
alaranjando

a poluição
azul-cel-este-oeste acin-zen-tado

o claro
-indo
escurecendo a vida
na cidade com tons lilás

do pátio do colégio, já podia ouvir... apressei o passo, meu coração-carnaval.

TUM... tum-TUM!
- começam os batuques
a festa mais colorida

desde 1917, as avenidas festejam o final de fevereiro com um cortejo de maracatu. cento e cinquenta alfaias vermelhas desfilam pelo centro da cidade. é a primeira vez sem Jorge, desde que nos conhecemos ali em 1971.
acompanho os tambores sozinha. a liberdade é uma das melhores coisas no 'dançar maracatu'. alguns batuques mais fortes me despertam.

giro
-ando
o vestido branco

solto as mãos
do corpo todo

pulando-explorando
o chão, a música
guiando

a marcha me leva à dança. as luzes e enfeites encantam o grande baile no vale do anhangabaú. gosto de sair me divertindo no meio das pessoas. uma menina sorri pra mim e começamos a misturar nossos confetes mirando em um holofote, no alto. ainda na chuva de pedacinhos de papel, ela some. todos dançam juntos, trocam serpentinas. sozinhos e juntos.
a música pára - duas mãos tampam meus olhos...

[as mãos da multidão! - a única coisa que a minha mente consegue sugerir.]

giro pra trás... meu cachecol vermelho se enrosca em nós dois.
ele me abraça, me cheira.

por algum motivo, a frança deixara seus cabelos mais encaracolados.

saudade, saudade
Jorge me beija.

doce carnaval.

2.3.11

frio clandestino

Já eram quase oito da noite quando ela chegou. Rua Maria Antonieta, 47. Só pode ser aqui - pensou. Quase congeladas, as mãos de Louise empurraram uma portinhola de madeira velha. O corredor era iluminado por uma luzinha amarela lá no canto onde deveria ser o seu fim. O fim que dava na entrada. Já haviam lhe falado que seria preciso colocar os números secretos - a mesma senha que utilizava nos documentos internos, guardada no único lugar em que o governo nunca encontraria, a sua memória.

y-g-t-3-r-d-1-7

...a trava abriu.

Ela ainda não conhecia o endereço clandestino mais recente do partido. Os capangas da Polícia Política sentiam o cheiro de cada tática. Nas ruas, de dia, era preciso se esconder entre a multidão. A sede mudava a cada mês. À noite, a regra era sair só quando houvesse alguma tarefa excepcional a cumprir. Arriscar a sorte já havia custado a vida de alguns companheiros.

- Vict...

Sua lembrança foi interrompida por Helena.

- Venha, a reunião já deve começar. Todos chegaram.

A pouca iluminação refletia o vermelho das paredes. No alto, se destacava a clareza da tipografia: LIGA DA INTELIGÊNCIA PROLETÁRIA INTERNACIONAL. Ela não reconhecia quase ninguém. Os codinomes confundiam Louise. Observava as conversas apenas, estava sempre sozinha. A ilegalidade não te permitia amigos.

A voz imponente de um dos membros da Célula Central abriu o encontro...

- Fizemos este chamado com caráter de extrema urgência para definirmos o rumo da Liga. Diante da execução de quase dez camaradas nas últimas semanas, queremos propor um recuo de nossa estratégia. Essas mortes mostraram o nosso despreparo e uma série de erros no último período. Precisamos diminuir nossas atividades. Ainda são muito poucos os operários dispostos à nossa luta. Não podemos arriscar uma aventura inconsequente!

Uma longa discussão...

Louise não entendia. A morte se passava apenas como um detalhe de uma longa caminhada, da qual ela sabia que nunca veria o fim. Já havia entregado sua vida a este caminho. Outra vida substituiu a sua, outro nome, outras pessoas, outras casas, lugares, outro país. Estava disposta a dar a vida pela revolução. Era pela fome dos outros, pelo sofrimento e pela humilhação que sentia.

- Não há mesmo sentido em viver como vivemos.
- O que disse, Louise? - os sessenta que estavam presentes se surpreenderam com o desabafo que saiu em voz alta, sem querer, daquela jovem que esteve sempre calada.
- Vou me abster dessa decisão. Talvez eu não compreenda os perigos e riscos deste momento.
- Louise, se todos nós formos executados pelos capangas, nada vai restar. O projeto da Liga estará morto. Precisamos ter o cuidado e a paciência. Talvez a revolução não aconteça como acreditamos. A Polícia Política de Luiz Otávio tem sido cada vez mais intolerante e onipresente. Os proletários do mundo todo nos esperam nos próximos anos, nos próximos levantes. Não podemos morrer agora.

Ela pensou que talvez quisesse se entregar às possibilidades da morte. Parecia mais fácil do que continuar lutando contra o que já se tornara há tempos insuportável.

- Sim, não podemos morrer.

As mãos geladas...

21.2.11

escrever!

escrever ou dormir?
há quase um ano essa pergunta tem a mesma resposta, mas hoje eu quis questionar o meu conservadorismo. aliás, fiquei revoltada por perceber e colocar na minha cara que o cansaço e a preguiça tem me vencido quase todos os dias.
lembro de quando eu dizia que "dormir é perda de tempo". um tempo que foi custando cada vez mais caro na minha rotina. um sono cada vez mais raro, ralo. a verdade é que pouquíssimos têm sido os sonos em que eu realmente descanso. e acho que as minhas noites pré-18 eram muito mais eficientes em apagar o dia que acabou. hoje parece que os problemas vão se embaralhando e acumulando de tal forma que... uma noite de sono não é suficiente e nem duas seriam, talvez nem três. não me recupero dos meus dias e noites. eles se juntam em mim se amontoando, desorganizados e perturbando a tranquilidade dos meus sonhos.
pior de tudo é que eu só completei 22 primaveras, outonos, verões, invernos. e já me sinto enlouquecida com a vida, sem suportá-la, sem tempo pra digeri-la decentemente, sem paciência....
mas estou certa de que isso não é efeito da vida adulta, mas sim uma pequena fase dela.
tenho saudade da minha insônia juvenil. de encher o saco de quem vai dormir cedo, de quem vive podre de tanto trabalhar. eu não sentia esse sono incontrolável. o trabalho e a responsabilidade, ainda que imaturas, já fazem estragos na minha disposição de viver como eu sempre vivi. me deu saudade de preferir ficar horas escrevendo sobre nada, só pra mim...
não precisa fazer sentido, não precisa ser pra alguém, nem ser lido.
é gostoso escrever só por escrever... estou enrolando aqui desde o início só para sentir o gostinho de juntar meia dúzia de palavras do jeito que elas vierem!