24.3.11

todos os dias que você escolhe ignorar

os beijos, quando escapam,
cortam meus lábios
sei que não posso impedir-te de ir
mas o que haverá de melhor longe de nós dois?

a tua ausência resseca a minha alma,
inverte os cantos da minha cama.
me acaricio, mas é tão frio.

posso ver o sono perdido, 
passeando ao redor da paranóia,
me desesperando, enquanto penso,
enquanto sinto a posse
do que eu não tenho.

pesadelos não têm compaixão.
não me perturbe com a voz dela ao fundo.
me deixe sonhar que sou una.

21.3.11

subway

tenho vontade de fazer parte desses trilhos que me guiam todos os dias. meu reflexo se mistura às linhas sem que eu perceba. a luz, a minha cabeça... se desgruda, se solta em duas, três... eu me multiplico através do vidro. no intervalo de uma parede, fui decaptada. ela me olha. o trem anda e eu a perco de vista. deslizando e deslizando sobre o meu sangue, meu gosto de ferro. observa um homem sobre a faixa amarela. os trilhos atraem a sua cabeça. mais um decaptado. depressa os passageiros seguem pra algum destino - paraíso ou liberdade? preciso saber onde estou. não consigo desviar meus olhos pra nenhum caminho. a fraqueza rende meu corpo. onde estão meus olhos? eu não consigo me mexer. meus restos se dividiram entre as estações. meu coração quis ficar. até chegar à minha boca, agora, um labirinto de pregos quebrados. minha alma foi triturada em silêncio entre as ferragens. ninguém se pergunta o que está lá fora, quem está lá, no escuro subterrâneo. as almas que olharam para os trilhos caminham sem destino, sem cabeças, nos corredores de emergência. 
minhas mãos presas no corrimão. debruçada sobre a proteção férrea, como se ali tivesse congelado após um momento de vertigem.
- fim da linha -

6.3.11

minha festa colorida

a suavidade entrava e saia
um pouco de brisa
[sem mar, água]
um pouco de alegria para os meus pulmões

meu olhar driblava os arranha-céus pra não perder um segundo daquele espetáculo. não há pintura que supere as cores absurdas do anoitecer. layout dos deuses.

color-
indo o céu

vermelho
-indo
alaranjando

a poluição
azul-cel-este-oeste acin-zen-tado

o claro
-indo
escurecendo a vida
na cidade com tons lilás

do pátio do colégio, já podia ouvir... apressei o passo, meu coração-carnaval.

TUM... tum-TUM!
- começam os batuques
a festa mais colorida

desde 1917, as avenidas festejam o final de fevereiro com um cortejo de maracatu. cento e cinquenta alfaias vermelhas desfilam pelo centro da cidade. é a primeira vez sem Jorge, desde que nos conhecemos ali em 1971.
acompanho os tambores sozinha. a liberdade é uma das melhores coisas no 'dançar maracatu'. alguns batuques mais fortes me despertam.

giro
-ando
o vestido branco

solto as mãos
do corpo todo

pulando-explorando
o chão, a música
guiando

a marcha me leva à dança. as luzes e enfeites encantam o grande baile no vale do anhangabaú. gosto de sair me divertindo no meio das pessoas. uma menina sorri pra mim e começamos a misturar nossos confetes mirando em um holofote, no alto. ainda na chuva de pedacinhos de papel, ela some. todos dançam juntos, trocam serpentinas. sozinhos e juntos.
a música pára - duas mãos tampam meus olhos...

[as mãos da multidão! - a única coisa que a minha mente consegue sugerir.]

giro pra trás... meu cachecol vermelho se enrosca em nós dois.
ele me abraça, me cheira.

por algum motivo, a frança deixara seus cabelos mais encaracolados.

saudade, saudade
Jorge me beija.

doce carnaval.

2.3.11

frio clandestino

Já eram quase oito da noite quando ela chegou. Rua Maria Antonieta, 47. Só pode ser aqui - pensou. Quase congeladas, as mãos de Louise empurraram uma portinhola de madeira velha. O corredor era iluminado por uma luzinha amarela lá no canto onde deveria ser o seu fim. O fim que dava na entrada. Já haviam lhe falado que seria preciso colocar os números secretos - a mesma senha que utilizava nos documentos internos, guardada no único lugar em que o governo nunca encontraria, a sua memória.

y-g-t-3-r-d-1-7

...a trava abriu.

Ela ainda não conhecia o endereço clandestino mais recente do partido. Os capangas da Polícia Política sentiam o cheiro de cada tática. Nas ruas, de dia, era preciso se esconder entre a multidão. A sede mudava a cada mês. À noite, a regra era sair só quando houvesse alguma tarefa excepcional a cumprir. Arriscar a sorte já havia custado a vida de alguns companheiros.

- Vict...

Sua lembrança foi interrompida por Helena.

- Venha, a reunião já deve começar. Todos chegaram.

A pouca iluminação refletia o vermelho das paredes. No alto, se destacava a clareza da tipografia: LIGA DA INTELIGÊNCIA PROLETÁRIA INTERNACIONAL. Ela não reconhecia quase ninguém. Os codinomes confundiam Louise. Observava as conversas apenas, estava sempre sozinha. A ilegalidade não te permitia amigos.

A voz imponente de um dos membros da Célula Central abriu o encontro...

- Fizemos este chamado com caráter de extrema urgência para definirmos o rumo da Liga. Diante da execução de quase dez camaradas nas últimas semanas, queremos propor um recuo de nossa estratégia. Essas mortes mostraram o nosso despreparo e uma série de erros no último período. Precisamos diminuir nossas atividades. Ainda são muito poucos os operários dispostos à nossa luta. Não podemos arriscar uma aventura inconsequente!

Uma longa discussão...

Louise não entendia. A morte se passava apenas como um detalhe de uma longa caminhada, da qual ela sabia que nunca veria o fim. Já havia entregado sua vida a este caminho. Outra vida substituiu a sua, outro nome, outras pessoas, outras casas, lugares, outro país. Estava disposta a dar a vida pela revolução. Era pela fome dos outros, pelo sofrimento e pela humilhação que sentia.

- Não há mesmo sentido em viver como vivemos.
- O que disse, Louise? - os sessenta que estavam presentes se surpreenderam com o desabafo que saiu em voz alta, sem querer, daquela jovem que esteve sempre calada.
- Vou me abster dessa decisão. Talvez eu não compreenda os perigos e riscos deste momento.
- Louise, se todos nós formos executados pelos capangas, nada vai restar. O projeto da Liga estará morto. Precisamos ter o cuidado e a paciência. Talvez a revolução não aconteça como acreditamos. A Polícia Política de Luiz Otávio tem sido cada vez mais intolerante e onipresente. Os proletários do mundo todo nos esperam nos próximos anos, nos próximos levantes. Não podemos morrer agora.

Ela pensou que talvez quisesse se entregar às possibilidades da morte. Parecia mais fácil do que continuar lutando contra o que já se tornara há tempos insuportável.

- Sim, não podemos morrer.

As mãos geladas...