2.3.11

frio clandestino

Já eram quase oito da noite quando ela chegou. Rua Maria Antonieta, 47. Só pode ser aqui - pensou. Quase congeladas, as mãos de Louise empurraram uma portinhola de madeira velha. O corredor era iluminado por uma luzinha amarela lá no canto onde deveria ser o seu fim. O fim que dava na entrada. Já haviam lhe falado que seria preciso colocar os números secretos - a mesma senha que utilizava nos documentos internos, guardada no único lugar em que o governo nunca encontraria, a sua memória.

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...a trava abriu.

Ela ainda não conhecia o endereço clandestino mais recente do partido. Os capangas da Polícia Política sentiam o cheiro de cada tática. Nas ruas, de dia, era preciso se esconder entre a multidão. A sede mudava a cada mês. À noite, a regra era sair só quando houvesse alguma tarefa excepcional a cumprir. Arriscar a sorte já havia custado a vida de alguns companheiros.

- Vict...

Sua lembrança foi interrompida por Helena.

- Venha, a reunião já deve começar. Todos chegaram.

A pouca iluminação refletia o vermelho das paredes. No alto, se destacava a clareza da tipografia: LIGA DA INTELIGÊNCIA PROLETÁRIA INTERNACIONAL. Ela não reconhecia quase ninguém. Os codinomes confundiam Louise. Observava as conversas apenas, estava sempre sozinha. A ilegalidade não te permitia amigos.

A voz imponente de um dos membros da Célula Central abriu o encontro...

- Fizemos este chamado com caráter de extrema urgência para definirmos o rumo da Liga. Diante da execução de quase dez camaradas nas últimas semanas, queremos propor um recuo de nossa estratégia. Essas mortes mostraram o nosso despreparo e uma série de erros no último período. Precisamos diminuir nossas atividades. Ainda são muito poucos os operários dispostos à nossa luta. Não podemos arriscar uma aventura inconsequente!

Uma longa discussão...

Louise não entendia. A morte se passava apenas como um detalhe de uma longa caminhada, da qual ela sabia que nunca veria o fim. Já havia entregado sua vida a este caminho. Outra vida substituiu a sua, outro nome, outras pessoas, outras casas, lugares, outro país. Estava disposta a dar a vida pela revolução. Era pela fome dos outros, pelo sofrimento e pela humilhação que sentia.

- Não há mesmo sentido em viver como vivemos.
- O que disse, Louise? - os sessenta que estavam presentes se surpreenderam com o desabafo que saiu em voz alta, sem querer, daquela jovem que esteve sempre calada.
- Vou me abster dessa decisão. Talvez eu não compreenda os perigos e riscos deste momento.
- Louise, se todos nós formos executados pelos capangas, nada vai restar. O projeto da Liga estará morto. Precisamos ter o cuidado e a paciência. Talvez a revolução não aconteça como acreditamos. A Polícia Política de Luiz Otávio tem sido cada vez mais intolerante e onipresente. Os proletários do mundo todo nos esperam nos próximos anos, nos próximos levantes. Não podemos morrer agora.

Ela pensou que talvez quisesse se entregar às possibilidades da morte. Parecia mais fácil do que continuar lutando contra o que já se tornara há tempos insuportável.

- Sim, não podemos morrer.

As mãos geladas...

Um comentário:

  1. muito bom!
    o recorte e a aflição de muitos (ainda poucos) que se sentem assim!

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