9.5.17

intoxicados

abandono, desperdício, perigo.
o corpo não resiste ao meio,
nem a consciência existe 
livre do esmaga-vida.

as coisas feitas à força
- o ódio das relações.
a maior máquina de todas
que natureza tem?

a estiagem social perdura
tempo demais na nossa carne.
e volta a fome, a necessidade,
o instinto, agora vil e potente,
estranho, numa classe oposta.

tudo isso que revolve por dentro
e permanece como um veneno,
dissolvido pouco a pouco,
amarga a boca do mundo.

2.5.17

belchior

parece que foi um amigo
que partiu levando pro espaço
um pedaço da nossa coragem
o grito forte do nosso coro
cortando – em vôo e canto
abrindo no céu um horizonte ferido
pra gente ver sempre sangrando
o novo, o novo e o novo

7.3.17

de ossos calados

o canto e a dança
-eu-fórica-,
os joelhos suplicam
um próximo fato

impedido, intocável,
fixo ao vértice 
da aniquilação

- o sonho foi petrificado
num impiedoso revés.

porém:
a serviço
uma nova ordem 
máquina

britadeiras para explodir
os desejos-cascalhos,
betoneiras para forjar
um tecido concreto

- cala e grita, para falar,
pára e corre, para mover
até que um ritmo
acerte

o que sorve e o que ansia,
lábios, estômago, garganta,
a água salgada
e o gosto de ferro

- o corpo 
é o olho nu 
espaço-tempo.

14.2.17

ser vivo

vi vida não-viva:
vírus, polímeros,
substância
homem-rocha.
vida-não,
vínculo vívido,
vida morta movida,
ser não ser vivo,
infinito movimento,
form-ato de vida.
- alma, deus...
nada disso!
dizem os vivos.

bocejo

S O O O

C O O O

O R R O

S O O U

O S O N

O L E N

T O S O

N O L E

E E E N

T O O U

L E N T

A M E N

T E N O

S I L E

N C I O

distração (em outras palavras)

entorpecida, imagino o tempo desperto,
pois há vida onde resido
à distância do teu colo.
e pelas cavidades inalo, no entanto,
num ângulo, prazer e ânimo,
entre um passo desatento,
ao fim líquido e certo
para o vívido intenso
sem peso, não sendo
não tendo, não dizendo, a-firmando.

10.1.17

distração

sonho durmo quando acordo 
porque vivo e moro onde
bem distante do seu peito
mas nos poros aspiro
um canto de fôlego de desejo 
pra enquanto eu distraída
fazer tanta água gota viva
vitalícia a paixão
vida leve a ser não 
a ser, a ser, acertar o não

9.1.17

acaso

o corpo anoitecia
em um e outro gole
eu pensava nele
ele pensava nela
mas sobre a mesa
uma outra sorte
– saúde! 
um brinde ao nosso caso
a partir daqui
até onde
decida
o lance de dados

12.12.16

vício

confesso que estou-----------
viciada em beber com vocês
viciada em beber--------------
viciada em----------------vocês
---------------beber-------vocês
vicia-------------------------------
--cia-------------------------------
vi---da-----------------------------
vi---------------------------vo-----
-----------------------------vo----s
boêmios
vícios

2.12.16

me-nino

pretinho,
te espero
na praça

passa o tempo,
gente,
pensamento...

da primavera
uma fruta 
me atinge

– colorido
em meu ombro
se quebra

a ânsia 
esperança
respira 

um, 
dois,

num canto
da vida
te encontro

me encanta 
seu riso
presente

invisto
me dispo
entrego

tantinho 
de dor
ou de 
remédio
.
.
.
menino
meu mimo
me nina

carinho
ensino
por cima

outro dia...

3.11.16

deep

profundidade, profundeza
mar, fundo do mar
abismo
recesso do coração
profundo, fundo
oculto, escondido, secreto
sagaz, astuto, penetrante
sincero, íntimo, vivo
intenso, extremo
dificultoso de entender, profundo
escuro, carregado (falando de cores)
sonoro, baixo, grave
absorto, concentrado em seus pensamentos
há muito, remotamente
profundamente

31.10.16

passageiro

por alguns minutos, recobrei os sentidos. algo se descolou de mim, saiu do meu peito e caminhou na minha frente. caminhava algo que eu já não sabia mais o que era. um desconhecido no meio da multidão, diluído como pó em líquido. seus passos seguiam apenas outros passos, indiferente às possibilidades de destino, iria para onde fosse a multidão. guiado por uma marcha cega, roda-viva. ele foi sugado pela correnteza...

nas faixas do metrô
as pessoas se vão
para a frente ou para trás
todos caminham
eu me viro pra outro lado
sinto o cheiro do caminho
as portas se abrem e se fecham
pelo túnel através 
da cidade de hoje
chega chega chega
loco-motiva

23.10.16

a tristeza de Natacha

Da mesma forma que antes, nunca falavam sobre ele, a fim de não violar com palavras, assim lhes parecia, a elevação de sentimento que existia nelas, porém tal silêncio a respeito dele fez com que, aos poucos, e sem acreditarem nisso, as duas se esquecessem dele.
Natacha emagreceu, ficou mais pálida, e seu corpo ficou tão fraco que todos não paravam de falar de sua saúde, e isso lhe agradava muito. Mas às vezes lhe ocorria inesperadamente não só um temor da morte, como um temor da doença, da fraqueza, da perda da beleza, e às vezes, sem querer, observava com atenção seu braço nu, espantando-se com sua magreza, ou então, de manhã, mirava no espelho o próprio rosto, que parecia repuxado e digno de pena. Parecia-lhe que tinha de ser assim, e ao mesmo tempo era triste e terrível. 
Certa vez ela subiu a escada correndo e sentiu uma forte falta de ar. Imediatamente, sem pensar, inventou um motivo para descer e depois subir de novo a escada, a fim de experimentar suas forças e observar-se.
De outra vez, chamou Duniacha, e sua voz estremeceu. Gritou com a voz de peito com que antes cantava e escutou-a com atenção.
Natacha não sabia daquilo, e nem acreditaria, mas, por baixo do que lhe parecia a camada de lodo impenetrável que toldava sua alma, já rompiam as pontinhas finas e tenras das folhas de grama que teriam de se enraizar e assim recobrir, com seus brotos de vida, a tristeza que a oprimia e que em breve não seria mais visível nem perceptível. A ferida estava cicatrizando por dentro. 


[trecho retirado de Guerra e Paz (L. Tolstoi)]

22.8.16

não

entre
sentir e não sentir
prevaleço
- mártir
para a vida breve
no peito
um tiro

19.7.16

28

28 quando fomos
dois infinitos.
28 quando fui
dividida em antes 
e depois.

dois aniversários, 
à solidão, comemoro.
em março, em dezembro,
fecho os olhos e assopro
- fogo aceso.

atravessando as estações
na minha terra, cultivo
traumas. 
e os renego.
a cada inverno, 
nua volto 
ao útero.

à celebração 
do que vive,
à celebração 
do que morre,
brindo uma taça
de lágrimas com riso
imaturo.

ao rito que me iniciou, 28!
símbolo-sim,
símbolo-não.
a vida girando 
em 28 voltas
em torno do sol.

19.6.16

vozes

um quarto apertado
uma janela pequena
uma rede pra eu não me jogar
a razão encaixotada
o meu corpo pra fora
corpo que não se encaixa
mas se eu quebro a janela
se eu rasgo a rede
o meu corpo terá caixa
do meu corpo cuidará a terra
a morte a cuidar do corpo
que a vida não cuidou.

2.6.16

chuva de inverno

chove 
quando eu me deito
chove 
na madrugada,
nos meus sonhos
perturbados,
o meu sono
tempestade.
e quando eu acordo
ainda é noite.
nos meus olhos
ainda chove.
será que o dia
não será sol?
de novo uma gota,
garoa cinzenta.
chove,
mas não aparece,
só umedece
e acumula
pesadas nuvens
a romper o silêncio,
relampejar
a escuridão de dentro.

15.5.16

sacrifício

qual será o corte
quão profunda a morte
um pouco agora
um pouco depois
o quanto for, o quanto dor
não haverá
o nó, a mágoa, o pó
do móvel que eu desloco,
da garganta que eu invoco
o tempo longe
o passado longe
o futuro longe
o presente longe

12.2.16

contra-gravidade

here are the young men, 
a weight on their shoulders
here are the young men,
well, where have they been?
we knocked on the doors 
of hell's darker chambers
pushed to the limit, 
we dragged ourselves in
watched from the wings 
as the scenes were replaying
we saw ourselves now 
as we never had seen
portrayal of the trauma
and degeneration
the sorrows we suffered 
and never were freed

do parapeito do vigésimo primeiro andar, o êxtase dos pés sobre a cidade inteira. a descoberta de um horizonte por cima do caos. a vida subia com tanta velocidade. como um foguete de última geração. a sensação de que o vôo era seguro, mas ainda um vôo, desafiando a gravidade. não era só a adrenalina, mas o alívio de desprender os pés do chão - estou a ponto de cair, mas uma chama potente anula o peso do corpo, direcionando todas as minhas forças ao céu, um combustível alimenta minha subida.

daqui a três anos já serão dez, e a aeronave ultrapassará ou se tornará - ultrapassada. o tempo deteriora. o tempo forma. o tempo coloca à prova as capacidades racionais. motores, energia. fósseis, raciocínios. acumulação de milhares de anos. o fogo primitivo ganhou novo sentido, fórmulas. do aquecimento do corpo ao estudo do universo, sendo mais veloz para resistir à força da gravidade.

a hipótese calculada, o acerto. a certeza de um pensamento que sobreviveu a um século inteiro contra a certeza de que a humanidade falha. só uma sociedade racional pode impedir uma catástrofe. para não cair no precipício, racionalizo. para subir novamente, racionalizo. a visão de um astronauta. os contornos do planeta vistos à distância, um vôo sobre a própria cabeça. um universo de conexões e entre buracos negros, ainda em estudo. o risco dos buracos negros. a angústia da incompreensão.

o combustível não renovável e uma galáxia tão desconhecida. uma nova geração com a força gravitacional de todas as gerações anteriores sobre seus ombros - uma geração inteira a ponto de cair, em busca de um combustível que possa acender nossos pés. um impulso de mil pés, salto, força contra-gravitacional. é preciso voar sobre nós mesmos, para ver o que somos. tomar a consciência de todos os séculos. é preciso sonhar. sentir no peito a força de todos os séculos. o pensamento fundido à natureza. o domínio das interações gravitacionais, razão que reacenda em nossos pés a vida de todos os séculos.