16.3.13

o horizonte como ponto de partida

"eu acho tão triste esse aeroporto", disse o rapaz sentado atrás. esperamos nossa partida. não sei se ele é daqui ou de Recife, os sotaques me confundem. estou certa apenas de que ele está para chegar em outro lugar. eu com meu sotaque paulista, sem graça, tenho que voltar e, na verdade, não sei por quê. os momentos forjam a dúvida à medida em que se sobrepõem. cá e lá, a cabeça não sabe o que a alma quer. sou compulsiva e me deixo levar. no final, é tudo mal pensado. às vezes dá certo. deu certo até agora pra ser o que fui até a linha anterior.

como em quase todas as partidas, sinto saudade de onde saio. quase todas porque aquelas em que deixo São Paulo, o coração é esperança e o olhar é adiante, poucas vezes preso e, quando preso, apenas por uma paranóia ou obrigação. por agora, só consigo pensar em Cristóvão, o índio negro surfista que deve estar em Moreré caminhando pela praia e observando o céu mais incrível que já vi. ou pode ser que ele esteja esculpindo uma nova tartaruga. ou, ainda, cortando o dedo por acidente ao observar o dente de um peixe capturado por um mergulhador. a maré já deve começar a vazar, enquanto a vila silencia o tom das conversas à distância, os cumprimentos que, mais cedo, todo mundo ouvia.

de novo, não vejo o horizonte. a possibilidade a olho nu volta a ser apenas consumo, milhares de informações desnecessárias, mercadorias, dinheiro, vitrines sem fim de ilusões sem. assim como Cristóvão, aqui as pessoas caminham, mas seus pés não tocam o chão. gastam sapatos em círculos de um labirinto, presas até que o horário de vôo se aproxime. me sento perto de uma loja de música, que tenta, da forma mais fake possível, tocar álbuns e versões alternativas de músicas turísticas.

Brasil é minha música preferida. e poderia dizer que a Bahia me faz, a partir de agora, dizer que Brasil também é minha comida preferida. mas me lembro do violino irlandês e da macarronada italiana, e aí já não sei mais. talvez por um tempo eu diga que moqueca é meu prato favorito, em vez de macarronada. eu vim em busca do meu coração tropical e, já no finalzinho desse caminho, encontrei. de primeira, a capital faltou em alguma parte. sobre Salvador escrevi outro dia:

'o anúncio de um assalto no Corredor Vitória é o antídoto ao romantismo em Itapuã. nossa terra é linda de viver e de morrer - foi o que ouvi. e tive que me desfazer de um celular com as únicas fotos lembranças. a miséria pode ser bonita nos telões dos festivais de cinema. a barbárie pode ser ficção ou um mundo invisível para os condomínios fechados das praias do Flamengo. mas lá ou cá, após o mais belo pôr-do-sol, nada é seguro. pedintes, assaltantes, viciados. saber de onde vem e pra onde vai parece não fazer diferença. à noite, a praia é proibida pelo medo.'

e Morro de São Paulo decepciona com seu mundaréu de argentinos com postura moderna de colonizadores - e os baianos com sua postura moderna de colonizados. apesar de Sebastian, que me vem à cabeça desde então e que me afastou o espírito patriota. acho muito bonito quando se tenta aprender sobre outra gente, outra língua, outra música. a beleza é o esforço em se comunicar sem arrogância, misturar-se sem saber exatamente fazê-lo, mas errar e se curvar para isso. então penso em voltar para Morro em menos de seis meses, quando ainda estará, para ouvir Sebastian tocar Vapor Barato depois de o sol se pôr do outro lado, avermelhando e anoitecendo. ou, penso, em conhecer, depois dos seis meses, Buenos Aires. imagino que ele possa estar neste mesmo minuto deixando o violão descansar e fazendo sua lenta despedida da casa rústica e do jardim floresta no quintal. deitado na cama com a mão debaixo da nuca, refletindo sobre a família e as pessoas e coisas do outro país, que o espera menos colorido do que a pintura real exposta em janela diante dos seus olhos abrasileirados por seis anos.

sem verde, mas também pensando em partir, eu aqui neste mini-shopping, onde vitrines anunciam produtos com 50% de desconto. e cá dentro me chega um riso do tipo que escapa logo que se conclui uma analogia irônica e ao mesmo tempo trágica. em Boipeba, as terras que há pouco tempo pertenciam a descendentes de aimorés vem sendo compradas a preço de banana por empresários, investidores e afins - brasileiros e gringos. as praias paradisíacas aos poucos se tornam cidades tão bizarras quanto qualquer parte do mundo capital. na beira-mar da semi-deserta Boca da Barra, um shopping no estilo boulevard contrasta agressivamente com a pureza verde e abundante dos coqueiros e da água ao redor. os nativos já sabem que os planos desse "barão", como dizem, são ainda maiores: "ele quer fazer um parque de diversão pra ele". a "Babilônia" é tudo o que não querem, e disso têm certeza tanta que a quase todo tempo reafirmam. a fala é ingênua, no sentido de ser pura, apesar de não facilmente enganada. o instinto naquelas pessoas funciona de maneira selvagem. o instinto funciona. onde a vida é tão simples que a destruição da vida é óbvia. a percepção é cristalina como a água das piscinas - as naturais.

não romantizar o modo de vida primitivo, não romantizar os modos de vida. nem o selvagem nem o urbano. devorar em diálogo. admirar o axé, o forró brega, o rebolado livre desta criança baiana que passa agora por mim. sim ver, não ignorar. ser canibal como em ritual. imaginei um filme quando um nativo de Moreré contou sobre essa prática que era realizada pela tribo que há cerca de duzentos anos habitava aquele mesmo lugar onde me coloquei por quatro dias. a história se desenvolve em processo circular e espiral, avança retornando em si mesma, o passado negando o presente e vice-versa. São Paulo e Moreré, Salvador e Boipeba, Morro de São Paulo e Buenos Aires.

de qualquer maneira, ainda vou viver ao lado do mar. não foi dessa vez. mas foi no Rio de Janeiro que prometi voltar logo pra ele, ficar bem pertinho um dia pra sempre. já sinto falta do horizonte.