14.10.09

à procura da cidade

- ... Imagina homens em morada subterrânea, em forma de caverna, que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a luz; estes homens aí se encontram desde a infância, com as pernas e o pescoço acorrentados, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles; a luz lhes vem de um fogo aceso sobre uma eminência, ao longe atrás deles; entre os prisioneiros e o fogo, passa um caminho elevado; imagina que, ao longo deste caminho, ergue-se um pequeno muro, semelhante aos tabiques que os exibidores de fantoches erigem à frente deles e por cima dos quais exibem suas maravilhas.

- Vejo isso.

- Considera agora o que lhes sobrevirá naturalmente se forem libertos das cadeias e curados da ignorância. Que se separe um desses prisioneiros, que o forcem a levantar-se imediatamente, a volver o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos à luz: ao efetuar todos esses movimentos, sofrerá, e o ofuscamento o impedirá de distinguir os objetos cuja sombra enxergava, há pouco. O que achas, pois, que ele responderá se alguém lhe vier dizer que tudo quanto vira até então eram apenas vãos fantasmas, mas que presentemente, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê de maneira mais justa? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas passantes, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é isso? Não crês que ficará embaraçado e que as sombras que via há pouco lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que ora lhe são mostrados?

- Muito mais verdadeiras.

- Necessitará, penso, de hábito para ver os objetos da região superior. Primeiro distinguirá mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidos na água, a seguir, os próprios objetos. Após isso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente durante a noite os corpos celestes e o céu mesmo, do que durante o dia o Sol e sua luz.

- Sem dúvida.

- Por fim, imagino, há de ser o Sol, não suas vãs imagens refletidas nas águas ou em qualquer outro local, mas o próprio Sol em seu verdadeiro lugar, que ele poderá ver e contemplar tal como é.

- Necessariamente.

- Depois disso, há de concluir, a respeito do Sol, que é este que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é causa de tudo quanto ele via, com os seus companheiros, na caverna.

- Evidentemente, chegará a esta conclusão.

- E se eles então se concedessem entre si honras e louvores, se outorgassem recompensas àquele que captasse com olhar mais vivo a passagem das sombras, que se recordasse melhor das que costumavam vir em primeiro lugar ou em último, ou caminhar juntas, e que, por isso, entre os prisioneiros, fossem honrados e poderosos? Ou então, como herói de Homero, não preferirá mil vezes ser apenas um servente de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às suas antigas ilusões e viver como vivia?

- Sou de tua opinião; ele preferirá sofrer tudo a viver desta maneira.

- Imagina ainda que este homem torne a descer à caverna e vá sentar-se em seu antigo lugar: não terá ele os olhos cegados pelas trevas, ao vir subitamente do pleno Sol?

- E se, para julgar estas sombras, tiver de entrar de novo em competição com os cativos que não abandonaram as correntes, no momento em que ainda está com a vista confusa e antes que seus olhos se tenham reacostumado, não provocará riso à própria custa e não dirão eles que, tendo ido para cima, voltou com a vista arruinada, de sorte que não vale mesmo a pena tentar subir até lá? E alguém tentar soltá-los e conduzi-los ao alto, e conseguissem eles pegá-lo e matá-lo, não o matarão?

- Sem dúvida alguma, eles o matariam.

*diálogo entre Sócrates e Glauco, retirado [com cortes] de A Alegoria da Caverna (A República; Platão).

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