eu estava no ônibus, voltando do trabalho a caminho de casa. olhei rapidamente pra
baixo, como - desde então - passei a fazer, pra checar onde exatamente
estavam os pés, o que havia em volta deles que pudesse machucar ou proteger
num eventual acidente ou sei lá. entre os meus
pés, o presente. peguei o cartão de novo pra ler direito, porque sequer
tinha dado a devida atenção pra ele. foi aí que, por debaixo da lente
do óculos escuro, escaparam duas lágrimas. dessas que vêm grossas e
pesam no colo.
já havia passado umas três ou quatro horas do momento em que o pessoal me
surpreendeu com um parabéns e em seguida uma sacola onde havia um
embrulho preto e branco, em formato de caixa de sapato. eu achei que
podia ser alguma brincadeira, algum sarro pra descontrair um aniversário
que eu especialmente comemorava. alguns estavam mais ansiosos do que
eu. "arranca tudo logo e abre", aí rasguei o papel e vi a caixa do Vans.
no dia 28 de dezembro eu perdi meu Vans, que era um tênis xodó. não
por nada, porque não tinha algo demais nem de menos. era um tênis desses
clássicos, qualquer. e era o tênis que meus pés levavam a caminho de um
reveillon que não aconteceu.
eu tinha tirado no ônibus pra poder ficar mais à vontade numa viagem de
pelo menos oito horas. em algum momento, ele sumiu. deve ter voado pra
rodovia ou ficado entre as ferragens, despedaçado. vai saber.
de todas as minhas coisas, perdi o tênis e um livro que tinha acabado de ganhar no amigo secreto.
junto com tênis e livro, foi coisa maior. foi coisa que eu ia viver,
plano de um novo ano. foi toda a alegria de quatro amigas, foi uma
amiga. foi um pesadelo que aconteceu.
no cartão, contei dezenove
nomes. não que a quantidade importe. mas é que achava aquela minha manhã
muito grandiosa e de uma forma um tanto inacreditável. eu queria ver de
novo, contar, ler, lembrar. é gostoso sentir carinho. e eu ali pela
primeira vez contava amigos que somavam mais do que as minhas duas mãos
juntas. muitos que convivo há mais de dois anos diariamente. não é pouco
- e isso pode ser óbvio pra vocês -, mas sentir na prática,
infelizmente, você só sente pra valer quando algo grande acontece, principalmente quando só você não é o bastante pra continuar de pé e aí precisa de
apoio. e muito desse apoio são os amigos de longa data, os novos amigos
ou os amigos que se tornam pelo simples fato de, num momento importante,
surgirem com um abraço ou um voto de alegrias. esse último é o caso de
muitos dos nomes que assinaram o cartão que volto a abrir. quero reler
porque não posso esquecer. ainda lembro do nome de um socorrista que me
acompanhou numa das viagens de ambulância. Belzac. quase exatamente o
nome do escritor (nem tinha como esquecer).
quando o momento é intenso, tudo o que acontece nele ganha tal
proporção. as pessoas que estão ganham a maior importância. Balzac não é
nada perto do Belzac, entende? e assim por diante os nomes vão se
fixando na sua memória, as pessoas tomam maior espaço nos seus
sentimentos. o carinho vai cabendo num bolo de chocolate, num cartão,
num par de tênis. cabe nos abraços mais gostosos do mundo - aqueles em
que há alívio de sentir a vida, sentir que o outro está vivo. e a
proporção dos atos vai além do que eles se propõem em princípio.
o Vans é meio que isso tudo. foi um presente de corações abertos, um
carinho muito grande, um cuidado todo especial com um momento que
muitos desses viveram junto comigo de alguma forma. e não acredito que
isso seja só por mim, na verdade, mas por eles mesmos também. há algo de
bonito que se fortaleceu. eu arrisco, mesmo em dúvida, que há algo da Day nisso tudo ou algo da falta dela. uma compensação que tentamos, um
seguir em frente mas ainda lembrar, porque é importante lembrar. nós
lembramos comemorando a minha vida.
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